Insónia profética

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Não dormes? Mas que culpa tenho se este meu corpo não cabe no teu?

Que ardilosa desculpa irás resgatar ao confundires esse amor com uma seiva madura que sobrevive aos invernos? É um amor diletante, leitoso e azedo, e tudo o que ele é, excede o teu nome. É todo ele rasura, e perfaz cem páginas tontas de um ódio que sonha com ódio: nunca desperta de si; nunca terá uma história.

Há livros que não têm história, mas vivem. Habitam bem menos na nossa cabeça que na cabeceira da mais grave insónia, mas vivem. São anjos de fraldas. E vivem. E mais de cem anos. E se não tivermos memória andrajosa que nos desligue desta humana insónia, teimamos em nunca a perder. E ficarão pegajosas as mãos quando cospem mulheres. E quedarão muito poucas as rosas na jarra já cega. E haverá chá todo o mês, no mês que é o primeiro do ano. Será eterno, como tu já não és. E todas as horas te esqueço. Todas as horas te teço um compasso mais longo que sinos fendidos nas torres mais duvidosas.  Pudera eu estar descalço das pedras que piso. Pudera eu levar-te ao colo antes de dançarem as mães em caprichos. Já não és menina, mas, mesmo assim, farei em ti o mais colorido poema de um campanário que toca as matinas apenas aos melros.

Alguns são culpados de ter a memória em pedaços, e não deglutirem o trago amargo da boca. Alguns são culpados de recolherem a sina dos mortos. Alguns fazem a profissão de fé esta noite, ao passo que todos os dias vos digo: caminhai sobre as águas que eu bebo, fazendo do vinho uma fonte, à qual virão pássaros, poucos. E tantos serão esses pássaros mortos que já nem insistem naquela insónia gasta de serem felizes. Mas quando a tenda armada dos dias puder dar abrigo aos mais amuados braços que nunca abraçaram e pensam demais, tudo estará consumado.

Não dormes? Sabes, os corpos que cabem no teu não são santos.

 

Alvadia

Tenho uma amiga entristecida nos olhos cor-de-palha, por não tê-los mais verdes que feno de Alvadia em orvalhadas manhãs de junho.
Crescendo às mãos do ribeiro, deixaram – a água e o feno – o berço da serra, além tropeçando em escolhos, em birras de infância, a quem chamam de fragas, por todos serem enxurros desta correnteza. De tão macerado, esse feno logrou repousar numa praia, onde pediu ter só paz e assim travestir o seu brilho no brilho da areia.
Tenho uma amiga de lábios vaiados, que finge e ignora como manter em verde Alvadia os olhos restantes do choro do meio dos meses, a meio da noite, nas noites em que ela não dorme no meio de mim.

Dixit

Dizes “Não vou deixar a porta entreaberta”; mas só assim abaterá ela nas bátegas da rija face, curvando fragmentos e dentes-de-leão numa onda furiosa. Só assim sentirá que persiste em inocência, do lado certo da luz, fechando a penumbra quando as emoções assistem ao seu próprio parto. Só assim tu virás para viver; só com um estrondo que vibre as mais velhas tábuas das mais finas ripas do mais hirto e morto carvalho que ainda resiste às minhas mãos de semente.
Dizes “Não vou deixar a porta entreaberta”; mas o que dizes só eu o escrevo.

Destroços (II)

Destroços

Destroços

Deitei-me fora de horas numa cama de destroços, envolvido pela aragem que se fez de sons adulta, e contudo neste dia tudo o que penso é mais pesado. Bem parece que o tempo não me cura, só me chama e recrimina. Deixei as condolências na mais alta parte da aldeia, onde não há lago em que navegue coisa alguma. Não há tempo. Larguei os sentimentos tão desperto, que lancinam agora as náuseas vestidas de amores e de ninfetas, da parte de mim que recuou e, sem ter horas de descer, se recolheu. Não me cuidam, não há tempo. Descolou-se a sola do sapato, por ser dia de chuva tão intensa que toda a calçada é um lago, em que navega coisa alguma, mas em que prevejo ter caliça sobre os livros guardados na cave, entre os quais lancei mil cartas e nelas promessas de contigo endurecer. Deitei-me fora de horas para não viver tudo isso, para humedecer os olhos a tal ponto que a invernia ainda assim os disfarce e os mime com pingentes. Não há tempo, nem velhos a quem possa agora tirá-lo. Lancei-me sobre as bátegas que projectam grinaldas sussurrantes, derrubando folhas, estendais, e podres frutos, ou todos os que são pueris e crêem num deus que os firme ao tronco só com orações. Lancei-me inteiro e intrepidamente, fechando todos os portões atrás de mim, até que as roupas que carrego sejam rodilhas de chuva embebida em lãs de fim de ano. Não há meio de cessar esta luz que anuncia ser mortiça quando me entra no quarto. Semeei um inverno de destroços. Não há tempo. Não há sequer sorrisos que perdurem fora de horas. Por isso me deitei sem um lamento, sem as vestes de quem fere as chuvadas e espreita pela fresta procurando ouvir queixumes. Por isso me debrucei no peitoril quando era mais intenso aquele braço que pedia para ficar. Mas porque ficarei eu num pátio sem encanto, tendo ao centro somente um poço e um gradil de violetas? Até no pátio o piar da coruja arrepia mais que a mão quando regressas a casa, a esta casa de telhados suaves com uma credência amuada em cada canto, para que não tenhas aprisco onde chorar. Até no pátio caem as folhas de todas as árvores que impedimos de florir, que o vento é traiçoeiro com os amantes enrugados de altivez. Não há tempo de as varrer, ou delas fazer chá. Nesta casa, nunca se faz a cama mais que um dia por ano, porque são sagrados estes destroços onde encosto a vergada desfaçatez da minha face. Nenhum deles resultou de implosão ou chamas, nenhum conheceu o chamego por mais do que as sete horas do dia. Não há mesmo tempo, nem graça, nem nada que pareça ter brilho, nestes destroços que são o leito de todas noites, e são o alento que pede tréguas ao sono.

Espelho

Sacudo o capote de plumas e aparo o corrimento invernil do mariz. Por entre o martelado do vidro, adivinho somente alguém que se apressa a abrir-me a porta, mesmo antes de nela eu bater. Sei que é Natal por pousar uma coroa de plástico sobre esse vidro; a mesma que já ali estava quando, nos meus vinte anos, achava que era má sorte negar ser feliz. Agora, este alpendre fica mais seco no mês de Dezembro. Guardou veladas camadas de histórias, e são já mais de seis os dias com raivas de vento cuspindo no verde que fez do coberto uma tenda onde só se reclinam as mulheres da casa à hora do chá. Tenho memória do tempo em que tudo isto aqui foi construído. Recordo a passagem da régua sobre a argamassa aguada, fazendo nascer um padrão de pequenas cores, dividido por aparentes carris de metal. Tenho memória dos anos passados desde esse então, e que garantem a quem me tomar como esposo que não serei muito mais feito de asco do que sou esta noite. Abre-se a porta. O cheiro a canela impede que se dividam todas as divisões desta casa, que chora por ser tão húmida e por já não persistir o abraço em vapor do bacalhau cozido naquela panela tão grande que era guardada ao longo do ano. Quando a herdar, sabei que será mantida intocada, e nela haverá alfaias de ironia, numa outra casa, onde ninguém bate à porta pelo Natal, onde ninguém bate, onde não há nem ninguém, nem Natal, e onde a vista resume-se a um edifício espelhado flectindo neóns, e um muro baixo, alcandorando um qualquer guarda-chuva desfeito e largado por raiva de não ter obedecido à chuvada. Pondero se esta vista não será, afinal, o meu próprio espelho.

Atalho

Conta-me a história do rio das três margens. Repete-a em todos os serões. Não me deixes repousar sem te ouvir. Embarca antes da noite te lembrar que a terceira margem do rio é esta ilha, onde acendo um facho cintilante em mecha húmida.

Hei-de de encontrar-te no olhar dos poucos gatos que assaltam o telhado. Hei-de aprender como carpir. Hei-de saber onde te escondes, e contigo reclamar de volta esse rio.

O mais velho olhar é aquele que, chorando, mais persiste. E, insistir em navegar entre as mãos, sem parar por segundos no teu peito, é um lugar de tristeza irresistível.

O meu olhar persiste.

Conta-me essa história até que a chuva pare de dormir, até que haja trepadeiras nos teus braços, até que os olhos se fundam em suspiros e atalhem o caminho para a morte.

 

 

Destroços

 

Os teus ossos são mais leves que a bruma. São os braços da nuvem que me chora sobre a campa da demora, e faleço por, de ti, merecer um só abraço. Desfaleço e não imploro. Que importa? São mais leves os teus ossos do que espuma adormecida num leito de penedia, esperando outra maré. Quando durmo, é com eles que cubro esta nudez, em vez dos lençóis de linho humedecido. Os teus ossos são mais horas nos ponteiros que minutos, e por dias estará o regresso aos meus destroços.

Anéis

Estando o mais pesado livro agora deitado na estante, posso dormir com a paixão do pudor, e sem a nudez, recolhendo os anéis numa caixa cinzenta ornada de autocolantes um pouco rasgados, impura, por ter sido nela que pus o meu dente mais rude e rebelde. Há já alguns meses que tento inumar nessa caixa um anel dos que uso. É largo demais no cabelo, e curto de marcas no vidro, quando o acometo em fúria. É pobre demais, se uma menina o usa, e teimam até em dizer-me que todo ele é de cobre. Mas é, afinal, de madeira. De uma madeira que chora. E quando eu retiro a mão do teu rosto, é quando os archotes mais húmidos alumiam cavernas, furtando-lhes ódio, aquele que transborda dos nichos rupestres.

Doente é quem determina que devo faltar ao desejo, e traí-lo. Pois tudo o que vejo além da grinalda que te fez mais alta, é luz e canções de embalar já antigas, e tocam por vezes bem mais que os sinos, numa manhã de qualquer romaria. Dormente é o toque que invade o luar de sonetos e inventa cisões, quando são recolhidas as mãos muito nuas do passo que dás mais à frente. Doente e dormente, eu devo aos anéis que odeio o exílio nesta solidão, e, ao fim desta recta de plátanos, haverá a curva incompleta, na qual me debruço, enganando a dor. E, dela rindo, serei o homem-deserto no impasse incerto. Terei de sorrir mais baixinho, enquanto dedilhas as cordas de uma guitarra com medo de acordares o estio no monte.

Estando o mais longo livro deitado na estante, posso brunir um sonho mais morno: o cume mais longo irá ser mais curvo, e, quando afastarem, as mãos, as liretas lilazes do morro, é lá que eu cravo um anel desigual sob os pés, é lá que eu morro, em todas as horas. E todas as pragas serão consumidas nas trevas mais áridas por anos de sono, enquanto os outeiros encobrem o ninho vazio das névoas cinzentas, zangadas que estão com as manhãs de Maio.

Baile

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A primeira mão que toquei era morna e vertia humidade entre os dedos. Depois, uma mão de anfíbio, quase repelente. De seguida, a de uma suposta pintora, com dedos bem finos e sempre arqueados de querer agarrar. E logo se seguem dedos mais hirtos na sua textura, ora de salgueiro, ora de plátano jovem. E vão cruzando essas mãos com a minha, primeiro com a esquerda, depois com a outra, todas bem compassadas.

Estou nesta dança e não sei quando acaba, mas uma após uma vão baloiçando ante mim as mulheres e os seus vestidos não são tão bizarros assim, nem os seus sorrisos diferem, ainda que umas sorriam o mesmo em cada compasso e outras alterem um pouco a centelha dos olhos. Uma torceu os cabelos sobre a cabeça e isso fez-me notar que era diferente, mas em quase nada. A dança prossegue no mesmo balanço, e passa mais uma, e outra, e todas as mãos deste mole andamento repousam por meio segundo nas minhas, primeiro a esquerda, depois a que pedem chegando ao altar. Nenhuma descai mais que o seu próprio peso, pois toda a mulher que aperta demais a mão de um homem, dizem que é máscula e deve dançar no sentido inverso, com outros trejeitos. E se eu tiver de escolher a mulher pelas mãos, este bailado será precioso e raras as vezes tão útil será o tempo perdido por entre salões e espelhos. A música nunca descansa, embora seja pausada no mel e isso deixa-nos tempo para olhar também os reflexos, os nossos e os de perfil de quem só tocamos de frente. Além, vejo tranças sobre ombros desnudos, e isso é bastante para me distrair, pois tenho de ver a que mãos correspondem. Tenho de saber. Mas, tão extenso é este salão e tantas são as damas vestidas num mesmo tom, que nem calculando o compasso até chegar junto a mim, terei a certeza de quem ela é.

Enquanto ergo a mão ao nível do peito, primeiro a esquerda, depois a do nome ofertado ao que é perfeito, vou recordando o porquê das tranças me terem cativo, ao ponto de serem o que mais detestava rever na infância. Eram o mais leve ornamento que poderiam usar as meninas, e isso mostrava o quanto não era especial quem eu queria que fosse. Mas, eis que vivi mais tarde o fazê-las, compassadamente, primeiro para a esquerda, depois para o lado que brilha mais vezes ao sol. E, desses dias e anos, sobrou-me tão só paciência. Hoje, são raras as tranças que fito em mulheres dependentes deste minueto enfadonho, e disso são o sinal, aquele sinal que creio poder indicar o fim desta dança, o tempo em que paro e me sento com ela. Contudo, de frente, todas são tão iguais e há por aqui um código tão cru para ver e sentir, que não posso sequer ter um nome. Terei de manter o meu passo, ferrar a distância entre as pernas, e albergar nestas palmas – primeiro a esquerda, depois a que te penteia – por meio segundo, todas as mãos que circulam aqui, até que fiquemos tão velhos que terão de soltar-se os cabelos. Aí, veremos quem é verdadeira anciã, que só solta a trança ao dormir. Aí, saberemos se estes olhos ainda terão lágrimas capazes de iluminar o rosto, ou se tudo será oco, seco, e monótono, como este baile imbecil que me carrega o corpo, e sei que não cessará numa praia.

Sou um marinheiro forçado, que apenas teme a rebentação e, por ser assim, lançou âncora no alto mar, tendo em si próprio uma ilha, onde crê vir a aportar a mão que quedar mais que um segundo, mais que uma dança, mais que um dia à sombra do sol. Não acredito em bailes de roda, mas rodo o meu corpo para te afagar, quando, finalmente, chegares. E quando o fizeres, tu dirás intrigada: “Baile, qual baile?”, sendo esse o momento de te recordar que as mãos de asceta, são por te banhares em ribeiros que correm também no Verão, embora abraçados de vales. Também estes ribeiros bailaram um dia; primeiro para a esquerda, depois para o lado do mar, e dizem ter sido assim que nasceram meandros, os mesmos que desfio nos teus longos cabelos antes de repousarmos o corpo e desampararmos a alma.