Tríade

triade

Fui espanhol apenas um dia, quando três mulheres conheci e nelas dormi em arregaçados encantos.
Delas retenho os mantos azuis repostos sobre o altar das memórias, em cada noite insistente, em cada rebanho de sol.
Numa, há cartas e trevos de quatro, e vinho agridoce no nome.
Há outra ainda, com ar de nascer num poema enrugado, aquele que pousa delgado na mão, para que aconchegue as flores ao seu corpo.
Por fim, há a escara dum fruto selvagem, e verte o seu carmesim em torrente, suturado em silêncios. É um enigma de dor, parido entre amarelos e verdes imersos na morte.
A primeira é louca de ser tão sensata. A segunda é sensata por se ver algo louca. Não creio ser assim tão pouca a loucura daquela que veio em terceiro. Moderadamente a primeira bebi, satirizei a terceira em novelos, enquanto revi na segunda todos os mapas guardados do corpo. Agora sei que há insónias em mármore, que há chuvascos cobrindo os recantos mais sóbrios, e quem dera tê-los.
Agora sei que há uma tríade, e há todo um tempo de tudo o que digo ficar por aqui, que as idades também adormecem em roseirais de retoques e pó, que as cidades também enchem os bolsos de risos, que são de pegulhos e troçam por ti.

Tamanha inocência

Tamanha

Conheço uma mulher cuja imagem no espelho é mais triste que a sua muralha de olhar assombrado. Conheço e não a conheço. Creio que é dela o corpo que está sobre mim estendido, abrigado.
De que adianta ser ruiva, e alta, e pintalgada na face, trajando um véu desbotado de negro, embaçado de borras de vinho? É dela a mão que desarma depois de ser mãe, é dela a fada enrugada e só se desnuda em vão curvilíneo, tamanha é essa muralha.
Expiro se me perguntas quem sou nos silvados. Escondo. Tenho no fundo do bolso uma mensagem de tinta encarnada, nascida de diatribes de orvalho, e mais nada.
Conheço uma mulher que se ama no espelho quando se sente amada, e nela insiste em surgir tamanha muralha que embarcar nela é como dançar com pedras tombadas de um sonho.
Um sonho. O sonho. Tamanha perda, que eternamente retorna em forma de ave, e cisma em temor, imaginando uma cilada de afectos.
Absurda e tamanha inocência.

Vou encontrar-te enlutada

Giovanni Giani - The morning of roses (1906)

Giovanni Giani – The morning of roses (1906)

Recortada ao fim de um jardim, anichada, estás como ontem, como se hoje chovesses mais de cem vezes. E brincas com mãos de criança. Empilhas tristezas nos folhos curvados do bibe, imbrincas as minhas memórias nas tuas, e páras. E sabes que não sou ninguém, e sabes que se ninguém aqui nada arrancar do meu peito, seguir-se-ão as crianças de todos, do tudo e do nada, aquelas que jorram sorrisos num morno cadinho de amarrotado cansaço.
E sentam-se ali na curva do mundo. E creio que vão brincando enquanto escrevo a história de um beijo eterno: o mais seco, o mais frio, o mais sério.
E sentam-se ali na fúria abrigada do mais longo sono do ano.
Não tremo. Por certo vou encontrar-te, nem que a floresta te tenha por prosa, nem que dos fetos saias já prenhe, nem que os muros abracem, além das árvores, as lápides; nem que os nichos abriguem figuras de louça furtadas no tempo, a quem os seus seis irmãos cingiram os braços para somar o teu corpo de beijos daninhos.
Vou encontrar-te nesse jardim encorpado de rimas. Nem que tu distes distâncias infindas, vou crescer nos teus lábios. Nem que me avistes e fujas, eu vou enlutar-te.
Vou por certo encontrar-te enlutada, nem que te faças de traços e farsas, nem que disfarces os passos, nem que te cubras de embaraços.

Mansardas

Quem tem por amigas as fadas

Reparto hoje o teu ninho por todos os pássaros novos, os que entram sem pedir, sem perguntas truncadas ou romarias de vergonha.
Em mansardas, reparto o teu nome por todos os nichos de chuva atrevida.
Chegar é um logro. Tu nunca chegaste, mas envelheceste enxugos de fogo.
Reparto hoje o teu modo de crescer. É por gula que te reparto pelas mãos, e faço-o antes de partir. Mas se partes também, vais sem a benção que firma o teu olhar no meu. Vais sem assombro ou intenção. Precede o teu voo um entristecido enleio no meu corpo.

Quem tem por amigas as fadas, não desmancha os sonhos como pétalas raras – que, sendo raras, serão também irrisórias. Quem as tem por amigas, não finda sem ver no seu rumo dois braços, sem ler nesses braços a sombra da mão que contorce as letras de um nome.

E quem tem por feitiço umas sardas, repousa em capa de asperges tecida em fileiras de amor formidáveis.
E este amor é redondo, entardece em afagos. Envolve e liberta a face de longos e púberes gelos. Antes de unir, reparte os teus medos, e lança um laço de paz que logo termina. Termina iludido. Termina num gato correndo as mansardas.

Quarenta e duas cartas a uma menina

Dedicatória

Escrevo a três mãos, para que me furtes nas nuvens, e rias. Sem senãos, sem desculpas.
És a menina moldada em estilhaços, os que ficaram de dez turbilhões. Não merecem recuos. Não inspiram lamentos ou vergastas de dor no chão espancado da vida agastada e ordeira que levas à sepultura mais bolorenta, sem veres como murcham o cetim dos teus olhos.
E os turbilhões sempre serão turbilhões, anões no encalço dessa atrevida cova que abriste. Mas aos anões, não se lhes toca nem dá a mão, nem mesmo à distância, que todos dormem onde é guardado o teu nicho e irrompe o teu hoje, aninhados em lenta e sisuda cama, fingindo infâncias robustas de choro e diatribes, anos nos quais se romperam mais bibes em danças de roda que nas festas às quais te levei pelo braço.
Sempre serão turbilhões, sempre serão incertos e quentes, culpados de ser inocentes num amor vestido até aos ossos, fingido em biscoitos de rimas. Resvalando para qualquer madrugada, não atam amantes com um “volta comigo” irado e sumido. Nada imaginam e residem tão sós, em leves e gélidos coitos, indeterminados e breves, que esquecem as poses divinas e confundem a bruma com verdadeiros regressos.
Não são milhares e não vivem, não dão explicações, não migram das tuas palavras, não vão escorrer pelos dedos nem cansar todo o sono cortado das últimas noites. Não sabem ser loucos, nem tampouco são por mim decifráveis.
És capaz de decifrar uma onda quando ela revolve os espaços, derruba os nós do regaço e envolve toda a areia invertida em contratempos e fúrias?
Pois eu consigo apenas decifrar o mar calmo, o ninho de uma gaivota isolada, dois barcos pousados na palma do teu cardo transladado em romã, mas não posso esperar que nades com ele benzida e sem nada. Nem por ti esperar posso, que irrompes de medo nas veias do céu e amas recantos de liberdade no recato de um jardim perturbado.
És uma menina moldada no vidro. E o dessa janela só te acrescenta os trinta anos que quiseres, pois muitas são as casas sem vidraças, sem velas, sem brisas que soprem até esconderem gemidos.
E é por isso que escrevo a três mãos, para que me colhas das nuvens, e rias. Para que me expliques como fazes para sumir e surgir sem dormir. Para que fiquem comigo as desculpas, e contigo o reverso do que conheço. Para que me cales quando negar ter nascido. Para que espraies turbilhões em dez praias, e recolhas as mãos em búzios perdidos na fronteira do mar.
Podemos então banhar o orvalho pendente num sol amornado que prometa florir?
Se me respondes, fá-lo com graça, que vim para ficar e fico aqui hoje onde te vim encontrar.

Do início e do fim

Do início e do fim

Quando dois poetas se amam, desperta sempre o amor nas páginas lidas de um livro e expira quando, à falta de tudo o que une, um deles se desculpa na clausura murcha de uma dessas páginas. E todo o amor, de todas as gentes, insiste em começar e findar em clichés. Como o dos góticos, que é por demais fatal que comece com pacto de sangue e termine em pulsos cortados.
Pois, o amor que eu tenho, vai começando e vai terminando. Não sei sequer se já terminou o primeiro que tive. Mas sei que devia ser como os pássaros, que amam apenas após a invernia e renovam os votos no ano seguinte, mas só se viverem mais do que um ano.
Sou um profeta e a mim próprio anuncio que está próximo o fim. E qualquer profecia é o que medeia entra a realidade e o sonho quando este é inabordável ou assume contornos divinos.

Elevador

elevador

I

Poucas coisas serão mais ridículas que dois ex-namorados da mesma mulher, parados no elevador de um hotel. Sem o sabermos, sabemos as suas medidas, mas aferimos somente a altura um do outro, e nunca trocamos olhares, por partilharmos vergonhas de irmão.
Ninguém nos espera no fundo, restando a vagarosa e hermética caixa de espelhos, com muitos botões, um deles com R já gasto. E por sermos baços e pardos, e lerem na nossa nuca a palavra “fracasso”, de nada adiantam tais espelhos.
Os velhos que se nos juntam, apenas preenchem espaços incómodos, para não corrermos o risco de esbracejar após as primeiras iradas palavras: “Então, és tu?”; “Sim, pois sou”.
Tão poucas coisas serão mais ridículas que dois ex-namorados de uma mulher que não foi amada, emparelhados com gatos de Schrodinger num elevador do mais caro hotel, e uma é mesmo entrarmos em pisos diferentes e um de nós perceber que deixou no quarto essa mesma mulher, e que hoje ela é a menina perdida de nós, de quem somos anjo da guarda, embora, de anjo, tenhamos só sexo, e guardemos apenas memórias, tornadas vigílias do que ficou por fazer no mais camuflado e derradeiro desvão desta madrugada.

II

Nada será mais ridiculamente adorável que essa mesma mulher amavelmente ridícula ter sido a primeira a ler este texto, amarrada à penumbra do quarto onde foi deixada, na mesma noite em que nos salvou de subirmos os três no mesmo ascensor, do mesmo hotel, num mesmo embaraço.
Sem o saber, de tão insuportável mulher soube afinal que me aceitou como anjo, mas só me pediu o pão pela manhã. Raios a partam e a espalhem sem dó.
Não são famosos os anjos que unem as cinzas, mas eu sou nascido dos pássaros, dormitando em março para poder cingir os restos dessa mulher aos restos do mundo, num erro que devo guardar para o próximo Verão.